Padres, Gurus e Médiuns, acusados de abuso. Como o Espiritismo se posiciona?

Na mesma semana em que saiu uma reportagem em O Globo sobre a investigação de 300 padres nos EUA, que teriam abusado de mil vítimas; aqui no Brasil, foi publicada a notícia, pela G1 sobre “médium presidente de sociedade espírita que vira réu por estelionato e violação sexual”. Ante o choque de muitos espíritas, que nos procuraram para comentar o fato, não poderíamos deixar de tecer uma análise a respeito, em que pese a nossa repugnância em tocar em assunto tão indigesto.

É preciso, porém, dizer que a prática (ou suspeita de prática) de abuso e assédio sexual e de desvio de bens financeiros entre líderes religiosos são tão antigos quanto as religiões. Mais recentemente na história, temos o desvendamento desses crimes na Igreja católica, que sempre os acobertou. Mas no Oriente, as coisas não se passam de forma diferente: Sai Baba, considerado pelos seguidores como uma encarnação divina, tinha inúmeros processos de pedofilia contra ele na Índia e no quarto em que dormia, foram encontrados milhões de rúpias e quantidades imensas de ouro.  O guru aclamado em frases diárias de autoajuda, que primeiro se chamava Rajneesh e depois, para fugir de crimes de que estava sendo acusado, mudou seu nome para Osho, também tem denúncias várias envolvendo abuso sexual e acúmulo de fortuna, em rolls-royces, aviões etc.

Ou seja, assistimos a esse fenômeno universal de mestres, sacerdotes, gurus, chefes de seitas, líderes religiosos aclamados que têm uma face sombria, de dominação, exploração e violência contra mulheres, crianças, adolescentes, jovens e adultos.

Qual a explicação para isso? Muita gente sempre supôs que a Igreja Católica, pela sua imposição de celibato, tenha sido uma fábrica de pervertidos. Mas se observamos o mesmo fenômeno em outros movimentos (e agora no próprio movimento espírita), onde não há a imposição de celibato sacerdotal, então essa não parece ser a explicação, ou pelo menos não é a única explicação.

E se invertêssemos o raciocínio? E se justamente nos redutos da liderança religiosa, vão muitas vezes se esconder personalidades doentias, desejosas de dominação, que buscam o acobertamento da religião para a prática de seus crimes?

E por que acontece isso? Porque as religiões, com suas hierarquias instituídas, com sua produção de mestres artificiais que comandam ovelhas submissas, dependentes e idólatras, são lugares onde a idealização de alguém dá a esse alguém carta branca para quase tudo.

Quando colocamos um ser humano, sempre falível, sempre simplesmente humano, com suas fraquezas e até doenças e desvios, como alguém superior a nós, alguém que não podemos questionar, que não está sujeito à crítica, que não é gente como a gente… alguém apenas reverenciado e idolatrado – estamos abrindo a porta para qualquer tipo de abuso, de sujeição, de violência mesmo.

Seria de se esperar que no espiritismo não ocorresse isso porque não somos uma religião no sentido tradicional do termo. Não temos sacerdotes, não temos gurus, não temos mestres. Em matéria de espiritualidade e espiritismo, todos somos aprendizes. E para o espiritismo, todos somos aprendizes e sujeitos, capazes de raciocinar, com autonomia e espírito crítico.

Mas sim, no Brasil, o movimento espírita se tornou uma religião no sentido tradicional. Médiuns e dirigentes agem como gurus, são venerados como tais e se tornam referência inquestionável de determinado centro ou comunidade e até do movimento espírita inteiro. E de repente, a casa cai, porque toda idealização encontra a chão duro da realidade. Porque quem se deixa venerar e idealizar tem algo a esconder. As pessoas que são mais normais, mais acessíveis, mais despojadas, mais gente como a gente, costumam ter menos obscuridades, embora qualquer pessoa possa ter seu lado problemático.

Algumas palavras sobre esse caso do médium Maury Rodrigues da Cruz. Eu já o conhecia de um encontro apenas, já tinha estado na Faculdade que ele dirige e alguns discípulos seus haviam me enviado anos atrás, vários livros de sua autoria mediúnica, com um espírito chamado Leocádio Correia. Já tinha feito uma análise cuidadosa dos livros que achei muito confusos, prolixos e repetitivos. E o pior, a bibliografia do curso de Teologia Espírita na faculdade dirigida pelo médium era predominantemente constituída desses livros mediúnicos. Vejam-se aí vários problemas (que aliás são generalizados no movimento espírita): textos supostamente psicografados, que são em linguagem empolada, ininteligível e que não passaram por nenhuma leitura crítica; centros, comunidades, baseadas inteiramente na liderança de um médium que se torna uma autoridade constituída pela sua própria e inquestionável mediunidade; e nesse caso específico, temos a proposta da constituição de um conhecimento (uma teologia espírita) baseada na obra de um médium, de um espírito, sem nenhum respaldo acadêmico, científico e sem nenhuma solidez filosófica.

Tudo isso, claro, não indicaria necessariamente essa acusação de abuso. Mas tudo isso abre a porta para qualquer desvio mais grave.

O espiritismo deveria ser – e é quando bem compreendido – uma ideia emancipatória, que entrega ao indivíduo a gestão de si mesmo, a uma proposta de autoeducação. Assim, as relações entre espíritas devem ser sempre horizontais, fraternas, abertas e jamais baseadas numa veneração submissa a uma suposta autoridade mediúnica. Isso perturba os que praticam a idolatria e perturba quem está posto no pedestal, pois que vai perdendo sua dimensão humana e igual aos outros e acaba acreditando em sua própria e suposta superioridade.

Lamentamos profundamente as vítimas desse caso e de outros, que sem dúvida acontecem em centros espíritas Brasil afora – mas alertamos a todos: estudemos o espiritismo, empoderemo-nos de seu caráter libertador e não rendamos culto a ninguém. Não alimentemos dependências doentias, que podem nos levar a situações de grande vulnerabilidade psíquica e mesmo ao perigo de sermos violados em nossa integridade.

Dora Incontri

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