O Coração de Meu Filho bate no Peito de Outra Criança

deisi(Luciana com Guilherme e na segunda foto Luciana, Deise com Vitória)

“Mamãe, eu vim para ajudar!” O Guilherme ainda nem sabia falar direito e já vivia repetindo isso! Como no dia em que um amiguinho dele queria desistir de uma apresentação na escola. O Gui pegou a mão do menino e disse: “Fica aqui comigo, eu te ajudo; eu vim para ajudar!” Meu filho era assim, generoso, amoroso, ativo… Dormia tarde e acordava cedo, como se soubesse que tinha que aproveitar cada segundo neste mundo, pois teria pouco tempo conosco. Afinal, Deus tinha reservado uma missão muito especial para ele aqui na Terra.

No dia em que morreu, ele repetia sem parar que estava feliz

Desde que nosso menino nasceu, na véspera do Natal de 2008, eu e o Fábio nos impressionamos com sua energia. Ele adorava brincar com outras crianças e viajar, principalmente para a praia. Por isso, quando uma amiga me convidou para passar o feriado de Corpus Christi do ano de 2013 na casa dela à beira-mar, topei na hora – mesmo sem meu marido poder ir.

Curtimos o sábado inteirinho na praia. O Gui brincava e corria sem parar, repetindo: “Mãe, tô muito, muito, muito feliz!” É bom saber que meu filho sentiu tanta felicidade no seu último dia de vida. À noite, eu estava escovando os dentes no térreo da casa e ouvindo o Gui brincar no sótão com o filho da minha amiga (ambos tinham 4 anos). Lembro de escutar a irmã da minha colega falar: “Gui, vem mais para cá, você pode cair”. No segundo seguinte, meu filho estava em queda livre. Despencou e bateu com a cabecinha no chão, no andar térreo. Ele havia se apoiado em falso na hora de mudar de lugar e perdeu o equilíbrio.

Desesperada, corri e peguei meu menino no colo. Ele começou a chorar baixinho e parecia estar tendo uma convulsão. Sem pensar em mais nada, eu e minha amiga o colocamos no carro e fomos para o hospital mais próximo, na cidade de Bertioga.

Eram 20 h quando entrei no pronto-socorro. A médica logo disse que o estado do Gui era gravíssimo e que ele precisava ir para um hospital maior, em Santos. Fomos transferidos de ambulância e o Fábio foi nos encontrar lá. O médico explicou que faria uma cirurgia para retirar um coágulo do cérebro, mas advertiu: “Caso sobreviva, ele deve ficar em estado vegetativo”.

A cirurgia durou uma hora e meia. Durante cada um desses 90 minutos eu rezei por um milagre. Quando o médico disse que tinham conseguido retirar o coágulo, senti que ele podia virar o jogo. “Força, Gui! Você sai dessa”, eu repetia baixinho, mandando boas energias para meu menino, que passou a noite sedado na UTI.

Na manhã seguinte, foram reduzindo a sedação e nada de o Gui responder. Só conseguia respirar com a ajuda dos aparelhos e sua sensibilidade não voltava. O tormento de alternar esperança e desespero se estendeu por mais quatro dias. Até que os médicos nos deram a notícia: o cérebro do nosso menino havia morrido.

Doamos os órgãos e pensei: “Pronto, Gui, você ajudou!”

Não vou perder tempo tentando descrever aqui a dor. Ela não cabe em palavra nenhuma. Eu ainda estava tonta quando nos perguntaram se íamos doar os órgãos, que permaneciam saudáveis. Me lembrei da voz do Gui dizendo: “Mãe, eu vim para ajudar!” Encarei o Fábio. Nos falamos pelo olhar e fizemos que sim com a cabeça. Quinze minutos depois, assinamos o papel da doação e o compromisso de não ir atrás das famílias que recebessem os órgãos. Soube pela mídia que uma menina de 1 aninho tinha recebido o coração. O nome dela não poderia ser outro: Vitória. “Pronto, Gui: você ajudou”, pensei.

Veio o enterro e o luto doído, que tornava insuportável a lembrança do meu filho andando pela nossa casa. Precisei ter muita fé (sou espírita) para me fortalecer novamente e aceitar que, mesmo que eu não tivesse levado ele para a praia, a tragédia teria acontecido em qualquer lugar.

Passaram-se oito meses e, em fevereiro de 2014, a família da Vitória quis nos conhecer. Eles estacionaram o carro na frente da nossa casa e meu coração disparou. Quando dei por mim, estávamos todos no meu jardim. Eu abraçada a Deisi, mãe da Vitória, e ao Vinícius, filho mais velho dela. Fábio, aos prantos, não desgrudava do Joel (pai da Vitória). No colo da mãe, a baixinha chorou. Eu a peguei e ela sorriu.

A gente pede um milagre e esquece que pode fazer um

Pensei no milagre que era ter um pedacinho do Gui naquela criatura e senti a presença de Deus. A cada sorriso que Vitória abria, uma sensação de gratidão inundava meu coração. Quando o Joel e a Deisi nos contaram que ela tinha nascido com dois problemas cardíacos e, literalmente, morou no hospital até ter 1 ano e 7 meses, Fábio e eu tivemos a certeza de que havíamos feito a coisa certa ao doar os órgãos do Gui.

Às vezes, a gente fica pedindo milagres para Deus e deixa de perceber que podemos ser responsáveis por esses milagres também. Perder um filho é uma dor sem fim. Mas ter salvado uma vida ao doar os órgãos dele ameniza a angústia. Porque dá sentido à partida dele. E tive um sonho lindo com o Gui. Ele me disse que estava bem e que “o dodói da cabeça havia sarado”; que não ia passar o Natal comigo, mas me amava muito. E me beijou.

Desde então, ficamos muito próximos da família da Vitória. Nos falamos sempre e, no Dia das Mães, fomos visitá-los em Santa Catarina. Ficamos na casa deles. Foram dias maravilhosos, vendo a Vitória viver com tanta energia. Emocionante o sorriso que ela dá toda vez que cochicho em seu ouvido: “Aproveita bem esse coração generoso que bate dentro do seu peito, menina”.

Luciana Novello, 43 anos, funcionária pública, Campinas, SP