O Cego que Jesus não Curou

Sidney Fernandes

Um pobre cego vivia na cidade de Betânia, perto de Jerusalém. Ele era tecelão e, não obstante a bondade de seus patrões, dormia numa árvore, em sua rede, exceto no inverno rigoroso, quando aceitava repousar na casa.

Em certa ocasião, sua audição apurada detectou grande alvoroço, o que lhe fez prenunciar a vinda de um convidado especial. Quando isso acontecia ele já sabia que o Mestre viria visitá-los. Mas, ele não estava entendendo o motivo da grande alegria reinante, pois seu patrão e amigo Lázaro havia morrido.

— Ele voltou, ele voltou… — disse Maria, entusiasmada.

Eu sei, eu sei. Pressenti a nobre visita — respondeu o cego, pensando que ela estivesse se referindo a Jesus.

Não, Lázaro voltou à vida.

A partir daí o cego não entendeu mais nada. Justificavam-se agora os gritos de felicidade de Marta e Maria. A emoção maior ainda estava por vir. No momento seguinte, Lázaro veio, abraçou e chorou com o querido cego. Tomou conhecimento de que o Mestre já havia feito isso, entre outras façanhas. Não faltou quem chegasse perto dele e cochichasse ao pé do ouvido, estimulando-o a pedir a Jesus que lhe restituísse a visão.

De repente, o inconfundível perfume, que ele sabia ser de Jesus, inundou o ambiente. Ele costumava mesmo vir até a sua árvore, antes de entrar na casa.

Depois dos cumprimentos afetuosos, em que se chamavam por apelidos carinhosos, Jesus falou com o cego em grego:

A maioria das coisas que existem ninguém as vê. Não tens a visão, mas consegues sentir sutilmente este invisível. Tu sabes que posso curar-te. Acreditas nisso?

— Claro, Mestre. Posso duvidar de algo algum dia, mas Lázaro, Marta, Marcos e também tua mãe e tantos já me disseram de tuas curas maravilhosas. Até cegos já me interpelaram para que faças o mesmo, que me cures. Mas sinto que tu sabes os motivos por que nunca te roguei isso.

— Quero ouvir de teus lábios — disse Jesus.

— Senhor, durante toda a minha vida fui atormentado por sonhos nos quais sou um grande senhor poderoso. Não sinto orgulho algum do que faço nesses pesadelos. Em todos esses pavorosos sonhos, vejo-me cegando centenas de vítimas. São apenas sonhos ou foi tudo realidade? Por isso, Jesus, acordo todas as vezes convicto de que já fui um desses algozes, já tive outra vida e fui esse senhor cruel. Então, sempre que penso nisso, fico feliz que eu esteja apenas encarando as sombras e a escuridão.

Nesse instante, porque alguém se aproximasse, Jesus voltou a falar em sua língua natal. O cego entendeu porque, discretamente, o Mestre dialogara com ele em grego, em respeito às suas íntimas aflições.

Aquela história estava cheia de confiança na Justiça do Pai, atestando que o cego, ao invés de lastimar sua condição, respeitava a Divina Providência.

Dirigindo-se a ele, Jesus falou, encerrando a conversa:

Respeito tua decisão. Quando chegar a hora, sabes que é só me avisar.

Emocionado, o cego respondeu:

— Claro, Mestre. Tu sabes a hora mais do que eu.

***

Esta narrativa não é minha e foi retirada do folclore do céu, expressão espirituosamente cunhada por Humberto de Campos (espírito), em seu livro Boa Nova, para denominar o folclore oriundo dos planos espirituais.

Ela me faz lembrar episódio semelhante ocorrido com Chico Xavier, que em certa ocasião dispensou, educadamente, cirurgia que lhe foi oferecida por José Arigó, e que seria realizada pelo espírito Dr. Fritz.  Chico alegou que seu mal era cármico e que ele ainda não estava preparado para a cura. Bem-humorado, explicou que, se lhe fosse suprimida aquela deficiência, ela poderia reaparecer em outra parte do organismo.

Naturalmente, poucos de nós estaríamos revestidos da nobreza de caracteres e do alto nível espiritual, tanto do cego da nossa narrativa, como de Chico Xavier. Da minha parte, é provável que abraçasse qualquer possibilidade de cura sem pestanejar.

Fica aqui, contudo, o registro da grandiosidade das almas desses dois personagens, cujo exercício do livre-arbítrio merece a nossa reflexão