Notícias do nascimento de Kardec e de Chico

“Como não há cego pior do que aquele que não quer ver, quando se reconhece a inutilidade de todas as tentativas para abrir os olhos ao fascinado, o melhor que se tem a fazer é deixá-lo com as suas ilusões. Ninguém pode curar um doente que se obstina em conservar o seu mal e nele se compraz.” (ALLAN KARDEC)

Por Paulo da Silva Neto Sobrinho. Revisão: Hugo Alvarenga Novaes

Acreditamos que é muito comum ocorrer a todos nós que, em nossas leituras, passemos por cima de detalhes importantes, embora eles estejam bem “na cara” como, popularmente, se diz; porém, só os vemos quando, por algum motivo, novamente temos que pesquisar numa certa obra e aí nos deparamos com eles.

Estávamos fazendo uma espécie de leitura dinâmica na obra Mensagens de Inês de Castro, de autoria de Caio Ramacciotti, na qual consta mensagens desse Espírito psicografadas por Chico Xavier, uma publicação do Grupo Espírita Emmanuel, São Bernardo do Campo, SP, quando, no capítulo “Isabel de Aragão, Chico Xavier e os Idos de 1910”, encontrei esta interessante informação: “[..] e o saudoso amigo contou-me um pouco dos preparativos de sua última reencarnação, ocorrida, como sabemos, a 2 de abril de 1910.” (1) Transcrevemos, desse capítulo, o seguinte trecho:

Contou-me Chico que, próximo ao seu nascimento, ocorreu no Plano Espiritual importante reunião com Isabel de Aragão e outros elevados Espíritos, a fim de estabelecer seu retorno à Terra.

E, durante os preparativos para sua reencarnação, Chico, com alguns Benfeitores, visitou o lar que o abrigaria, assim descrevendo a emoção do reencontro com a futura mãe:

– De minha parte, pela primeira vez, enxergava a paisagem de Pedro Leopoldo.

Era bem um vale úmido a vila modesta que pisávamos.

Uma cachoeira de águas claras parecia cantar no terreno recentemente desbravado, e as linhas da via férrea se me figuravam antenas horizontais do progresso que penetrava pelo verde adentro.

O ribeiro separava o povoado em duas regiões distintas. Do lado norte, de que vínhamos, estava a indústria nascente dos tecidos de algodão, e, para cá do ribeiro, no lado sul, o casario escasso parecia um conjunto de grandes pombais caiados de branco.

A oeste, o sol entrava no poente.

Entrei, com Benfeitores Amigos, numa rua que se abria, como até hoje, à frente da igreja, singela mas já construída em louvor da Mãe de Jesus.

Estacamos à porta de entrada da casa que seria o meu lar. Aguardamos alguns minutos de expectação, quando jovem senhora, em companhia de outras, se destacou para entrar na residência humilde.

Era morena, de baixa estatura, vestindo roupa simples e de sorriso amigo, evidenciando resignação e simplicidade. Os cabelos trançados se lhe enrodilhavam de modo gracioso na cabeça. Despediu-se das companheiras que seguiram à frente e passou por nós sem ver-nos.

Um dos Benfeitores explicou:

— Esta é a nossa irmã tutelada de João de Deus. Em várias existências, brilhou na cultura do mundo e, por várias vezes, se consagrou à religião em casas de fé.

No entanto, em fins do século passado, pediu a maternidade por tarefa primordial, rogando ambiente de extrema carência material, para burilar-se na própria alma.

Tem agora a idade de vinte e seis anos na experiência física, um marido operário, junto de quem é humilde tecelona numa fábrica de tecidos, e já foi mãe de oito filhos, tendo perdido uma filhinha desencarnada em idade tenra e mantendo ainda sete que estão em crescimento.

Chico continuou:

– Uma simpatia profunda me ligou imediatamente àquela mulher humilde e tranquila. Parecia-me rever em roupagem diferente uma irmã querida de quem me afastara sem precisar por quanto tempo. Incapaz de explicar a emoção que me dominava, caí em pranto em que a dor se misturava com a alegria, pois reencontrava uma criatura afetuosa e amiga.

Lembro-me de que não me pude conter e caminhei para ela, envolvendo-a num grande abraço. A senhora sentiu profunda comoção e começou também a chorar, ignorando como explicar a si própria o motivo de tantas lágrimas.

Decorridos instantes, entrou o marido, um homem claro, magro e alto, usando colete antigo sob o paletó comum e, após retirar um boné que trazia na cabeça pintalgada de algodão, perguntou:

– Maria, o que houve, porque chora?

– João – respondeu ela – eu mesma não sei. Estou assim como quem se recorda de alguém que a gente ama e que a morte não mais nos deixa ver…

– Você andou lendo algum romance, falou aquele que iria ser meu pai.

– Não, nada li… É apenas um estado estranho em que entrei…

O dono da casa buscou o interior da moradia, de onde vinham vozes e gritos de crianças, e Maria de João de Deus sentou-se e orou, ali mesmo, na sala estreita, pedindo a Jesus a paz de quem ali estivesse, na condição de alma em saudade e sofrimento.

Penetrei nos recantos da casa, na qual deveria em breve habitar. A pobreza e a simplicidade de tudo faziam-me chorar.

Retornamos à Vida Espiritual e, pouco tempo mais tarde, voltei para que me ligasse a Maria de João de Deus em definitivo.

Foi em 1910, quando tive a obrigação de obedecer a severas disciplinas, para que tudo ocorresse segundo a Vida Maior e não conforme os meus ideais, egoísticos talvez, de felicidade e de amor. (2)

Ao ler essas informações, relacionadas ao nascimento de Chico Xavier (1910-2002), lembramo-nos que, em algum lugar, havia algo semelhante em relação a Allan Kardec (1804-1869), mas onde? A curiosidade nos envolveu de tal forma que acabamos por nos embrenhar em nova pesquisa visando encontrar em que livro vimos isso.

Gastamos um bom tempo na pesquisa, mas enfim a encontramos. Trata-se da obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, ditada pelo Espírito Irmão X ao médium Chico Xavier, cuja primeira publicação ocorreu em 1938 pela FEB – Federação Espírita Brasileira. Nessa obra, o Espírito Humberto de Campos dá notícia de uma grande movimentação de Espíritos no mundo espiritual, provavelmente um pouco antes do início do século XIX:

O século XIX, que surgira com as últimas agitações provocadas no mundo pela Revolução Francesa, estava destinado a presenciar extraordinários acontecimentos. No seu transcurso, cumprir-se-ia a promessa de Jesus, que, segundo os ensinamentos do seu Evangelho, derramaria as claridades divinas do seu coração sobre toda a carne, para que o Consolador reorganizasse as energias das criaturas, a caminho das profundas transições do século XX.

Mal não haviam terminado as atividades bélicas da triste missão de Bonaparte e já o espaço se movimentava, no sentido de renovar os surtos de progresso das coletividades. Assembleias espirituais, reunindo os gênios inspiradores de todas as pátrias do orbe, eram levadas a efeito, nas luzes do infinito, para a designação de missionários das novas revelações. Em uma de tais assembleias, presidida pelo coração misericordioso e augusto do Cordeiro, fora destacado um dos grandes discípulos do Senhor, para vir à Terra com a tarefa de organizar e compilar ensinamentos que seriam revelados, oferecendo um método de observação a todos os estudiosos do tempo. Foi assim que Allan Kardec, a 3 de outubro de 1804, via a luz da atmosfera terrestre, na cidade de Lião. Segundo os planos de trabalho do mundo invisível, o grande missionário, no seu maravilhoso esforço de síntese, contaria com a cooperação de uma plêiade de auxiliares da sua obra, designados particularmente para coadjuvá-lo, nas individualidades de João-Batista Roustaing, que organizaria o trabalho da fé; de Léon Denis, que efetuaria o desdobramento filosófico; de Gabriel Delanne, que apresentaria a estrada científica e de Camille Flammarion, que abriria a cortina dos mundos, desenhando as maravilhas das paisagens celestes, cooperando assim na codificação kardequiana no Velho Mundo e dilatando-a com os necessários complementos. (3) (grifo nosso)

O contraste entre as duas narrativas é gritante. Em relação a Kardec temos uma assembleia que foi “presidida pelo coração misericordioso e augusto do Cordeiro”, ou seja, o próprio Cristo, em que foram escolhidos os missionários da nova revelação, leia-se, Espiritismo, tendo à frente Kardec.

Quanto a Chico Xavier, temos que “ocorreu no Plano Espiritual importante reunião com Isabel de Aragão e outros elevados Espíritos, a fim de estabelecer seu retorno à Terra.”, entretanto, o nome de Jesus não é citado. Caso ele fizesse parte do grupo de “outros elevados Espíritos”, o fato de não o mencionar seria uma infeliz descortesia com o “Mestre de todos nós” (4), utilizando-nos de uma expressão de Erasto.

Não bastasse isso, ainda temos que o Espírito que presidiu a todos os que se envolveram na revelação espírita foi o guia de Kardec: “Sim, senhores, este fato é não só característico, mas é providencial. Eis, a este respeito, o que me dizia ainda ontem, antes da sessão, o meu guia espiritual: o Espírito de Verdade.” (5)

Sim, claro, é preciso que identifiquemos quem, de fato, era o guia de Kardec que se utilizou do codinome Espírito de Verdade, para isso vamos comparar duas falas de Kardec, constantes de O Evangelho Segundo o Espiritismo, publicado em abril de 1864, e de A Gênese, publicado em janeiro de 1868. Vejamos, pela ordem:

[…] o Espiritismo […]. Vem cumprir, nos tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das coisas futuras. Portanto, o Espiritismo é obra do Cristo, que Ele mesmo preside, assim como preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o Reino de Deus na Terra. (6)

[…] o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo em relação ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside o grande movimento da regeneração, a promessa de sua vinda encontra-se cumprida, porque, de fato, ele é o verdadeiro Consolador. (7)

Se Cristo preside o movimento de regeneração e o Espírito de Verdade também o preside, a conclusão óbvia e lógica é que Jesus é o Espírito de Verdade.

Isso é algo que facilmente se pode corroborar, bastaria tomar desta explicação do Instrutor Alexandre a André Luiz, constante da obra Missionários da Luz:

– Mediunidade – prosseguiu ele, arrebatando-nos os corações – constitui meio de comunicação; e o próprio Jesus nos afirma: “eu sou a porta… se alguém entrar por mim será salvo e entrará, sairá e achará pastagens!” Por que audácia incompreensível imaginais a realização sublime sem vos afeiçoardes ao Espírito de Verdade, que é o próprio Senhor? (8)

Mas para que não paire nenhuma dúvida e se tenha como algo contundente, ainda trazemos o escritor Paulo Henrique Figueiredo, que, na coluna “Questione” da revista Universo Espírita, respondendo a um leitor, disse-lhe:

Pois bem, as cartas estão sendo agora mantidas pelo neto de Canuto. Numa delas, depois de comentar as dificuldades na divulgação do Espiritismo, Kardec afirma que soube, por meio de comunicação mediúnica, o fato do Espírito da Verdade ser Jesus: “Não sei se conseguiria ter calma e controlar minha emoção se soubesse antes que o Espírito com quem conversei semanalmente era o meigo rabino de Nazaré”. […]. (9) (grifo nosso)

Em breve teremos publicados os documentos de Canuto de Abreu (1892-1980), e assim poderemos confirmar que, de fato, Kardec sabia que Jesus, realmente, era o Espírito de Verdade. (10)

Mas por que motivo estamos falando do guia de Kardec? Bem, é para também demonstrar outro contraste entre o Codificador e o Mineiro do Século XX.

Ora, enquanto Kardec tinha Jesus como seu guia, Chico Xavier só mereceu ser orientado por um Espírito, cuja participação na Codificação consta de apenas uma mensagem. Citamos isso como um fato, sem qualquer intenção de desmerecer Emmanuel.

É algo como já o dissemos alhures: Kardec teve como seu guia um general, mas, ao voltar como Chico Xavier (é o que querem que acreditemos), seu guia foi apenas um dos personagens mais simples da hierarquia. Isso, para nós, não faz sentido algum!

Então, temos que Jesus participa da assembleia que decide sobre a volta de Kardec, sendo o seu guia, certamente no que se relacionava à Codificação Espírita. Aí, ele supostamente volta como Chico Xavier, porém, sem qualquer participação comprovada de Jesus, seja nos preparativos de sua nova encarnação, seja, em guiar-lhe novamente os passos. A conclusão a que chegamos, é que a crença de Chico Xavier ser a reencarnação de Allan Kardec, é um verdadeiro absurdo!

Em Mensagens de Inês de Castro, destacamos a seguinte fala de Chico Xavier “Foi em 1910, quando tive a obrigação de obedecer a severas disciplinas, para que tudo ocorresse segundo a Vida Maior e não conforme os meus ideais, egoísticos talvez, de felicidade e de amor.” (11) (grifo nosso) Pode até ser que estejamos enganados, mas a nossa impressão é que Chico Xavier se considerava um Espírito ainda em busca de sua própria evolução moral, não se tinha na condição de um Espírito Superior, como, muitas vezes, o vemos sendo colocado. Para muitos confrades, o médium Chico Xavier foi um Santo (12), apesar de, enfaticamente, ele ter negado isso: “Eu não sou santo! Deus me livre dessa ideia de santidade que os outros fazem de mim.” (13)

 

Referências bibliográficas:

BACCELLI, C. A. O Evangelho de Chico Xavier. Votuporanga, SP: Didier, 2000.FIGUEIREDO, P. H. Questione in Universo Espírita, nº 54, São Paulo: Universo Espírita, 2008.KARDEC, A. A Gênese. Brasília: FEB, 2013.KARDEC, A. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013.KARDEC, A. Revista Espírita 1861. Araras, SP: IDE, 1993.RAMACCIOTTI, C. Mensagens de Inês de Castro. 26ª ed. São Bernardo do Campo, SP: GEEM, 2014.TAVARES, C. Amor e Sabedoria de Emamnuel. Araras, SP: IDE, 1986. XAVIER, F. C. Missionários da Luz. Rio de Janeiro: FEB, 1986.

Chico Xavier, disponível em: https://caminharpelaespiritualidadedotcom.files.wordpress.com/2016/02/pscografia-chico-web.jpg” width=”495″ height=”278″ style=”margin: 10px; float: left;” />?w=202&h=286&zoom=2. Acesso em: 17 dez. 2018.

1        Clóvis Tavares (1915-1984) falando sobre a “maravilhosa potencialidade da memória mediúnica” de Chico, diz que ele “[…] recorda-se dos preparativos de sua atual reencarnação, quando era trazido pelos Benfeitores Espirituais, muitas vezes, ao lar humílimo da inesquecível autora de ‘Cartas de Uma Morta’, a bondosa Maria João de Deus…” (TAVARES, Trinta anos com Chico Xavier, p. 95)2        RAMACCIOTTI, Mensagens de Inês de Castro, p. 213-217. 3        XAVIER, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, p. 175-176. 4        KARDEC, Revista Espírita 1861, p. 350.5        KARDEC, Revista Espírita 1861, p. 356. 6        KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 40. 7        KARDEC, A Gênese, p. 62. 8        XAVIER, Missionários da Luz, p. 99. 9        FIGUEIREDO, Questione, in: Universo Espírita, nº 54, p. 7. 10        Em breve, publicaremos o ebook Espírito de Verdade, quem seria ele?, 178 páginas, no qual trazemos muito mais informações que permitem a identificação desse personagem como sendo Jesus.11        RAMACCIOTTI, Mensagens de Inês de Castro, p. 217. 12        Imagem é meramente ilustrativa, por ter uma semelhança muito grande com as que representam alguns santos católicos, porém, não estamos dizendo que o autor Baltazar Neto, tenha dito que Chico Xavier foi santo, fonte: https://caminharpelaespiritualidadedotcom.files.wordpress.com/2016/02/pscografia-chico-web. 13        BACCELLI, O Evangelho de Chico Xavier, p. 144.