Hermenêutica das Escrituras Sagradas

Queridos amigos de reflexões doutrinárias, se você cursou a Faculdade de Direito, a palavra ‘hermenêutica’ não lhe soará desconhecida, por ser cadeira básica de qualquer grade curricular daquele curso universitário.

No entanto, é bem possível que tal palavra lhe soe estranha e talvez seja esta a primeira vez que você a lê ou pensa nela em termos religiosos, cabendo aqui uma brevíssima explanação acerca do seu significado.

Sem nos aprofundarmos em preciosismos técnicos, podemos entender que o vocábulo traduz o conjunto de teorias voltadas para a interpretação de algo, notadamente um texto. De larga aplicação no campo das ciências jurídicas, refere-se a todo o conjunto de princípios e normas gerais que devem ser mobilizados no sentido de delimitar o sentido e o alcance de determinada lei.

No entanto tal palavra sempre esteve fortemente associada à interpretação de textos religiosos, até mesmo pela sua própria etimologia, que nos aponta a origem na figura mitológica do deus grego Hermes, que lhe teria emprestado o nome por derivação. Hermes foi considerado o mensageiro dos deuses ou o intérprete de suas vontades, aquele que viria trazer, para os pobres mortais, as deliberações de Zeus e seus pares no Olimpo, por isso frequentemente retratado com um par de asinhas nos pés e no capacete, que lhe conferiam agilidade.

Ocorre que, por sua ambiguidade, Hermes era considerado, entre outros predicados não tão lisonjeiros, como “trapaceiro”, tendo por vítima favorita seu irmão Apolo, a quem chegou a roubar e enganar calçando suas sandálias ao contrário, a fim de que o irmão seguisse a pista falsa.

Pois bem, grosso modo chamamos de exegese a arte de interpretar um texto bíblico, pois que, vale dizer, como todo e qualquer texto, a Bíblia também comporta interpretação. Diríamos mais: dado o seu alto teor simbólico, as Escrituras Sagradas exigem interpretação em busca de desvendar a intenção original de seus autores, conforme intuiu o Apóstolo dos Gentios, ao cravar na segunda carta aos Coríntios que a letra mata, mas o espírito vivifica.

Com efeito, ao ouvirmos de Jesus que Ele não veio trazer paz à Terra, mas a espada, ninguém imagina que o Cristão deva pegar em armas, correto? Há um nítido sentido figurado, aí, carecendo ser interpretado. No entanto, tal distinção nem sempre se faz muito clara. Por exemplo, estaria Jesus falando em sentido figurado quando afirmou que deveríamos amar aos nossos inimigos, ou quando asseverou a Nicodemos que era necessário nascer de novo para ver o Reino?

Bem mais difícil essas respostas, não é?

Agora, pense comigo: se até nos textos mais diretos das Escrituras já se exige tal esforço interpretativo do leitor ou estudioso que se dirá, então, das parábolas de Jesus, carregadas de imagens e símbolos que buscavam retratar, em termos terrenos, verdades espirituais?

Herbert Lockyer, autor do interessante “Todas as parábolas da Bíblia”, dirá que “na parábola, a imagem do mundo visível é emprestada e se faz acompanhar de uma verdade do mundo espiritual” para concluir que, por isso precisam ser interpretadas, às vezes até de mais de uma maneira.

No entanto, haveria regras para a interpretação do texto bíblico, assim como existem regras para a interpretação de um texto legal?

Sim, as regras existem, muitas delas influenciadas e definidas pela Reforma Protestante que se insurgiu frente à primazia da Igreja Católica Romana e do Papa em “dizer o direito” acerca das Escrituras Sagradas, escudados na doutrina da infalibilidade papal, para a qual o Papa, assessorado pelo Espírito Santo, estaria indene de erros.

A partir de Lutero e, sobretudo, Calvino, desenvolveram-se alguns princípios de interpretação bíblica assentados, sobretudo, nos cinco solas, como ficaram conhecidas as frases, em latim, que fundaram os princípios da reforma protestante. Curiosamente, ao pregarem a liberdade de interpretação das Escrituras Sagradas em relação à Igreja Romana, acabou-se recaindo nas limitações dogmáticas deste mesmo novo corpo de doutrina recém-sistematizado.

Tal fato, entretanto, não invalida que o exegeta das Escrituras oriente sua leitura de maneira a buscar as respostas nos próprios textos sagrados (a Bíblia interpretando a própria Bíblia, princípio do sola scriptura, do Protestantismo), contextualizar as passagens ao tempo e ao modo em que ocorreram, ampliar a visão dos fatos com a leitura dos textos paralelos que a eles se reportam, aplicar o bom senso e distinguir aquilo que é literal do que é simbólico, estas algumas regras que a exegese nos apontam e referenciam.

No entanto, tais regras somente produzem todos os seus efeitos quando se encontram num ambiente livre da dogmatização da fé, liberdade plena que a humanidade adquiriu na pessoa de um dos inspiradores da Reforma que viveu no século XIV – Jan Huss – posteriormente reencarnado na França do século XIX e que, em 1864, proclamou que “não há fé inabalável senão aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” – Allan Kardec.

Paulo Lara