Antes que seja tarde demais –  por Sidney Fernandes

Reconcilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele…

Mateus, 5:25

Nunca dantes a cidade São Paulo reuniu um grupo de jovens capaz de fazer tanto barulho. Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Menotti Del Pichia, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, com a Semana de Arte Moderna de 1922, jogaram São Paulo para o centro de renovação artística e cultural do país.

Oswald e Mário, não eram irmãos, como muitos supunham, foram amigos durante poucos anos e logo tomaram rumos diversos. Os seus temperamentos eram diferentes e preconizaram uma das contendas mais tristes da história da cultura brasileira. A briga definitiva entre eles ocorreu em 1929 e jamais foi esquecida.

Brincadeiras ferinas e provocações de Oswald causaram o rompimento entre os dois Andrades. Oswald se arrependeu, chorou amargamente quando Mário morreu, e ficou triste de não ter podido se reconciliar com ele, antes disso. Reuniram-se, enfim, depois da morte, no Cemitério da Consolação, em São Paulo.

Muitos amigos comuns se esforçaram para reconciliá-los, principalmente Tarsila do Amaral, que, na época, estava casada com Oswald e continuou sendo amiga de Mário. Imagino que ambos preferiram continuar vivendo brigados, permanecendo assim por muitos anos, com suas existências azedadas pelo ressentimento. Se houvessem exercitado um pouco de compreensão e tolerância, talvez tivessem se aproximado, antes que fosse tarde demais.

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Naquela manhã, Doutor Gualberto estava sério e preocupado. Médico oncologista, sempre passava, ao final do cansativo plantão noturno, pela casa de apoio dos voluntários de um hospital público.

Embora dura a jornada, sempre tinha um sorriso ou alguma pitoresca história, que contava, enquanto tomava um cafezinho, para ganhar energia para o dia que iria se iniciar.

Notando a inabitual seriedade, a turma logo se solidarizou com ele, buscando animá-lo. Com um sorriso meio sem graça e uma lágrima disfarçada, Gualberto contou que, na madrugada, teve uma conversa com Otávio, senhor de oitenta e dois anos, em estado terminal na UTI.

— Pelo amor de Deus, Doutor Gualberto. Dê-me pelo menos mais um dia de vida. Não posso morrer assim…

— Assim como, Otávio?

— Sem me reconciliar com meu filho. Muitos anos atrás tivemos uma desavença, daquelas em que um não olha mais para a cara do outro. Arrependo-me amargamente de ter sido tão duro e intransigente. Não posso partir sem ao menos pedir perdão para meu filho.

— No plantão desta madrugada — confessou Doutor Gualberto aos seus improvisados confidentes —, tive a confirmação do que venho pensando há muitos anos. De nada adiantam a posição social, a riqueza, a fama ou o prestígio político. Meu paciente está no fim de suas ilusões. A única coisa que almeja — e não sei se terá tempo para isso — é partir desta vida de bem com seu filho. Será que todos nós já temos noção dessa realidade?

Para alegria e alívio do Doutor Gualberto, naquele mesmo dia o filho de Otávio foi visitá-lo no hospital.

— Felizmente — arrematou o médico, uma semana mais tarde — Otávio partiu em paz.

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Otávio e os escritores Oswald e Mário de Andrade viveram situações em que poderiam e deveriam ter perdoado, superado o orgulho e se reconciliado com seus desafetos.

Felizmente, o filho de Otávio aproveitou essa oportunidade em vida. Oswald e Mário só tiveram esse ensejo do outro lado da existência, onde, provavelmente, compreenderam como eram estúpidos os ressentimentos que se votavam mutuamente e infantis os motivos que os inspiravam.